No coração do Sul de Minas, uma espécie de Grande Sertão – Veredas, várias histórias se cruzam: Dona Maria José se despede do marido morto que será enterrado num pequeno cemitério ao lado da capela – “Vai meu veio, vai, que logo eu vou também, meu amor” E as lágrimas correm pela face sulcada de rugas ancestrais.E ela desce, solitária, pela longa estrada da vida, que vai dar junto ao fogão de lenha que ela não abandona nunca,mesmo com apenas algumas brasas dormidas, durante a madrugada. Olhando dia e noite, noite e dia, tudo o que acontece além da janela da cozinha. Lembra agora como conheceu seu marido, Lázaro, num passeio a Poços de Calda, tendo apenas 16 anos. Quanta saudade, meu Deus!, recorda ela, limpando os olhos. Casou-se e ali morou para sempre.Trabalho árduo na roça, nunca lhe cansou. Mas agora!
Na última casinha da estrada, Dona Ana não se conforma com a morte prematura do filho Luciano, bom jogador de futebol na várzea. A doença apareceu no sangramento repentino das gengivas e assim continuou por dias. Na Santa Casa de São Lourenço, o duro diagnóstico: câncer. Agricultor, como seu pai Sebastião, o filho mexia com adubos altamente cancerígenos, sem nenhuma proteção, nas lavouras de repolho, couve flor, batata ou cebola, conforme a época.
Moída pela dor da separação, a mãe nunca mais terá o sorriso largo e alegre do filho. Olha inúmeras vezes, seu retratinho na parede da casa onde tudo é simples, pequeno, amoroso. E chora, não aceita, dias e dias assim. Luciano pelos campos, como alma penada. “Deixa seu filho seguir seu caminho, dona Ana”, aconselha o padre nas missas dominicais. “Nada, Nonada”. Até que um dia, de tanta missa, novena, água benta e preces dos moradores e dos rapazes, colegas de futebol, lá se foi Luciano numa tarde de céu azul, no poente, sobre as montanhas azuis mineiras, como um anjo viril e suave ao mesmo tempo.
Só ficaram boas memórias, esta outra forma de vida, naquela pequena casinha de Dona “doce” Donana, vivendo das lembranças do filho. “Estou em paz, mas aceitar, acho que nunca...”,comenta sempre no beiral da janela da cozinha, de onde enxerga o “campinho” de futebol. “Donana, num fala assim que Deus castiga,mulher”, diziam as comadres. Na casa das “russas”, assim chamada por que as moças são todas loiras e casadoiras (e arredias também),cópias fiéis de seus antepassados ucranianos, fechadas em sua inescalável timidez,Rosália também chora.Luciano era seu primeiro e também caladão namorado de adolescência.
Numa casinha, quase no alto da serra, perto de uma cachoeira pequena, também chora Tonho que, homossexual, o único na vila, tinha um caso muito secreto com Luciano. Mas todos sabiam que, nas noites de sábado, na ausência de mulheres e diversão, na roça, ele promovia “saraus”, com a rapaziada até altas madrugadas, vestida de Messalina ou Vanderléa, dos tempos da Jovem Guarda. Dizem que até lobisomens apareciam por lá para tomar “uns drinques”, com a única bicha do mato, na região entre Maria da Fé e Dom Bosco.”O Tonho é gente boa”, comentava a rapaziada
Sabedora de tudo o que acontecia, Josefa, do alto dos seus 80 anos, pitava seu eterno cachimbo, com enorme prazer, sentada num banquinho da, varanda de sua casa, como uma Mãe de Santo sabedora de tudo nesta e na outra vida. “Qualquer hora a cobra vai fumar!” Eita fuzuê, Tonho não tem eito!”
Para comemorar as safras produzidas e vendidas nos entrepostos do Vale do Paraíba, os roceiros se encharcavam de cachaça nos botecos do caminho, onde, costumeiramente apareciam algumas prostitutas da Zona do Buieê, de Paraisópolis, trazidas por Sueli, a “fia do Zé do Hoter”, prá “carmá o desejo sexuar dos home”. Era uma combinação entre eles, que já durava anos e anos, naquelas paragens.
E o Jaca, típico roceiro, homem bom, calmo, 37 anos, nascido e criado por aquelas bandas não se conformava com os mexericos da Rosa, sua mulher e mãe de seus três filhos. Era só ele botar o pé em casa, um antigo casarão do tempo dos escravos, lá vinha a mulher encher sua cabeça com fofocas. Ele já tinha se desentendido com várias mulheres e seus maridos por causa deste terrível costume de inventar moda das casadas, das solteiras e dos solteiros, tratava mal as crianças por qualquer coisinha.
Um verdadeiro inferno na cabeça daquele homem que, de sol a sol, vivia só para suas vacas, tratando-as e ordenando-as com carinho para que elas produzissem o melhor, leite da região e queijos mineiros dos mais apurados. Vivia lamentando com os amigos como a mulher tinha mudado depois do casamento. Tava que não agüentava mais e já tinha até feito romaria a cavalo rumo à Aparecida e rezado muito, pedindo que a santa de sua devoção desde pequeno fizesse algum milagre. “Nada, nonada”
Pensava que a mulher talvez tivesse ficado louca aos poucos, pois falava mal de todos e de tudo, um verdadeiro inferno em vida. Até na cama, de noite ela acordava para falar mal das vizinhas e incitando o marido a tirar satisfação e vingar de coisas banais. Rosa já estava ficando isolada pois todos a evitavam por causa deste costume. As mulheres queriam matá-la de tanto mexerico que fazia. Inventou que dona Vera, a professorinha da pequena escola do Sertão dos Cunha, um anjo de candura, era mulher da vida em Caxambu.
Foi a gota d’água, um bafafá danado. E foi assim até que um dia, de manhã bem cedo, quase clareando e o sino da capela batendo prá missa de domingo que o corpo dela apareceu balançando no galho de uma figueira bem no alto do morro. Tinha se enforcado ou alguém praticou o crime. Um alívio transpareceu na vida de todos os moradores que achavam que um dia isso ia acontecer. As dúvidas recaíam sobre o marido, mas o fato é que o tempo passou e as coisas foram voltando á normalidade, caindo, no esquecimento. A mexiriqueira foi enterrada por ali mesmo, perto de uma grande pedra.
Passaram a dizer que a figueira tinha ficado mal assombrada. E Jaca só muito depois voltou a se ligar a uma mulata que acabou criando seus filhos diretinho como é de costume na roça, neste Sul de Minas que as pessoas falam que não é apenas uma região, mas uma espécie de instituição, por causa da profunda religiosidade e conservadorismo das famílias. Todos católicos, apostólicas romanos, se bem que uma espécie de invasão pentecostal já começava a mexer com a cabeça daquela gente.
Os filhos dos fazendeiros, mais letrados, estudavam em Itajubá e falavam que o Sertão dos Cunha ou o Sul ,de Minas de modo geral era uma espécie de “Irlanda brasileira”, por causa dos costumes rígidos e das superstições, principalmente histórias de pretos velhos,corpos secos, fantasmas de sinhás e sinhasínhas perversas, de fazendeiros cruéis e sobre lobisomens, entre outros casos.
O corte de uma antiga e robusta jabuticabeira, no sítio do “seu” João foi uma imprudência comentada durante anos. Por que ele tinha feito isso, se a árvore produzia muitos frutos todos os anos, não estava incomodando ninguém. Um crime contra a natureza, que todos lamentavam. Foi no ano que choveu tanto que o lugar chegou a ficar isolado do resto do mundo.
E o córrego das Freiras transbordava inundando tudo. Os trovões e relâmpagos ribombavam assustadoramente, clareando as madrugadas, assustando todos com medo de que o mundo estivesse acabando ou algum castigo do céu estava sendo mandado para que os homens parassem também com aquela bebedeira toda nos botecos ao longo da estrada.
Lá do alto das montanhas, todos podiam ter um ampla visão do Sertão dos Cunha. Paisagem inigualável. Um estranho conjunto de pedras enormes servia de pouso de discos voadores e aparições extraterrestres, afirmavam os moradores. Muitos clarões estranhos foram vistos, de madrugada. Mas era o local preferido para se fazer piqueniques, embora as pedras tivessem realmente um aspecto sombrio, principalmente ao cair da tarde.
Talvez saída de algum filme de Mazzaropi, o Sertão dos Cunhas também tinha uma personagem hilária na figura de uma mulher que, fugia aos padrões das outras, geralmente sérias, não gostando muito de brincadeiras. Era dona Leonor, viúva de um rico fazendeiro. “Estão vendo, ele vivia dizendo que eu estava com o pé na cova. Mas quem foi primeiro foi ele!, comentava com as amigas.
Adorava visitar a filha em São José dos Campos, onde era freguesa habitual do restaurante Resgate Caipira, em Monteiro Lobato. E vivia dizendo que “o sul de Minas começa em São Francisco Xavier,” onde ainda hoje mora Constância, uma de suas melhores amigas. “O lugar é uma gracinha”, dizia.
Literalmente vivia “torrando” o dinheiro do falecido nos shoppings. Sempre muito bem vestida, até numa certa extravagância, de jóias, pulseiras, colares e outros penduricalhos ressonantes. “Mão aberta”, presenteava os filhos, as filhas, os netos e as amigas, só para ter o prazer de vê-los contentes. Quando voltava prá roça era uma festa aguardada com muita ansiedade, todos querendo saber dos passeios que ela fazia e dos presentes que trazia.
Inesquecível era ainda dona Benedita, cujos filhos fizeram fortuna no Vale do Paraíba, com um rede de Supermercados, a partir de Taubaté. Tinha quatro filhos, duas mulheres e dois homens. Um deles, o primogênito, era Edmundo. O mais arteiro. E todos os dias às seis horas da tarde, na hora da Ave Maria, ela gritava do portão, com toda a potência de seu fôlego, – Muuunnndddiiinnnhhhooo! Vem prá dentro, oooooo, minino danado”. Era um chamado tão forte,tão severo, tão amor de mãe temerosa, com hora marcada, que as pessoas de longe ouviam – “Estão escutando, são seis horas, é hora de se recolher!”
Raimundo amava desesperadamente Florisa, Namoro e noivado se arrastando anos e anos, por indecisão sabe-se lá de quê, por parte da bem amada, que vivia brigando com o noivo. Talvez medo de sair da casa dos pais. A situação foi rolando, rolando. O tratorista só faltava se matar de paixão e tesão pela moça. Afinal, o que Florisa queria? Destratava o rapaz a ponto das amigas comentarem “Olha, partidão como este você não encontra todo dia, vamos decida –se! Ele te ama muito.”
Até que um dia,Raimundo, zangadíssimo, foi até a casa dos pais de Florisa e, comentam até hoje, trouxe ela pelos cabelos, arrastando estrada abaixo, até a casinha azul,como o manto de Nossa Senhora, muito bem arrumadinha, com um coraçãozinho desenho na porta com seus nomes – Raimundo e Florisa. A noiva supreendida, rendeu - se finalmente, se entregando de corpo e alma àquele amante latino, para a felicidade de todos que queriam vê-los junto finalmente.
A cena foi uma delícia para Margarida e Filomena, solteironas esperançosas e conhecidas casamenteiras. “Até pareceu Mauren O’Hara sendo arrastada e amada pelo impetuoso e talentoso ator John Wayne, naquele filme antigo “Depois do Vendaval”, com ação passada num distante vilarejo da Irlanda natal do diretor John Ford” , comentavam sempre,nas festas religiosas, nas quermesses, apesar do desconhecimento das pessoas sobre cinema. “Quem? Onde?”
Uma noite de lua cheia, daquelas lindonas de clarear tudo, a rapaziada se juntou num descampado prá prosear, tocando violão e cantando modinhas sertanejas. E beber cerveja, ora se não! Era uma turma mesmo, de uns vinte. Até mesmo quem tinha moto vinha de São Lourenço. Aconteceu o seguinte: de tanta felicidade, tanta beleza, tanta doçura no coração, que todos, ao som de um violão, cantaram e riram, mas riram prá valer, assim do nada, de, tudo, de qualquer coisa, riram de se acabar. E a lua cheia parecia também rir lá de cima.
Até que o domingo foi aparecendo no horizonte, colorindo tudo de tons róseos, como a promessa de um grande amor. Mas daí já a rapaziada toda dormia o sono dos justos na relva meio que molhada de orvalho da madrugada. Alguns com a braguilha da calça rancheira semi aberta. Ora se não!