sexta-feira, 23 de março de 2012

UMA MÃE DE SANTO CHAMADA DONA DÊ


Dê, de Delícia. Mãe Delicinha. Coisa estranha achavam os parentes! Toda vez que a menina Delícia, nome dado pela mãe, não se sabe muito bem porquê, passava por uma banca de doces de uma baiana conhecida, perto do Mercado Modelo,em Salvador, tinha desmaios e ficava salivando. Alguém tinha de socorrê-la com um pedaço de cocada branca ou preta. Delícia aos poucos voltava a si, como num sonho, depois de ter balbuciado algumas palavras desconexas.

Demorou para as pessoas da família e conhecidos acharem que aquilo “era coisa de Santo” e que a menina, com cinco anos mais ou menos, uma graciosa alemãzinha, de profundos olhos azuis, recém chegada ao Brasil, em l943, tinha que “desenvolver sua mediunidade” num dos muitos terreiros da Bahia. “A menina deve ser prometida de Cosme Damião ou de algum santo ou orixá (Ogum de Beira Mar?) ligado a criança que gosta de guloseimas”, falavam as vizinhas de Dona Marlene Dietrich e Gustave Van Heinreid pais de Delícia.


Assim que chegaram ao Brasil, desembarcando de um navio holandês, no porto de Salvador, fugindo do Nazi Fascismo ( Hitler já dominava a Europa), o casal se encantou com o calor e com a diversidade colorida da nova terra que pretendiam adotar. Com certa dificuldade, por causa da língua portuguesa e dialetos que as pessoas falavam, principalmente os negros e negras, que, sem sombra de dúvida, eram extremamente corteses e sorridentes, acharam um pequeno sobrado na Baixa do Sapateiro, onde passaram a morar. Todos achavam bem diferente aquele casal muito branco e também bem educado.

A dúvida era como eles iam se adaptar ao calor dos Trópicos e às comidas típicas da região? Foi assunto por muitos meses. Por fim, acabaram de acostumando. Havia uma pequena colônia de refugiados alemães perto da casa do escritor Jorge Amado e sua mulher Zélia, no bairro do Rio Vermelho. Ambos caíram de amores pelo casal, principalmente Zélia Gattai, descendente de italianos de São Paulo e que estava receosa do que estava acontecendo na Itália de Mussolini, onde ainda moravam vários de seus parentes.

Jorge Amado integrava o Partido Comunista e não gostava nenhum pouco do ditador Getúlio Vargas, que governava o Brasil, naquela época e que só apoiou os aliados depois que o presidente americano Roosevelt visitou o Brasil e recebeu dele um puxão de orelhas político fazendo-o lembrar que a “América é dos americanos”.

O resto a história conta com mais detalhes. Voltemos ao cotidiano da menina Delícia, que foi crescendo com várias meninas e meninos negros, brancos e mulatos da “Roma Negra”, nome dado a Salvador pelo antropólogo francês Pierre Verger, um dos muitos estrangeiros que adotaram a enorme afetividade brasileira (brasilidade).

Todos, em Salvador, já sabiam dos desmaios (ou incorporação) da menina Delícia toda vez que via uma baiana vendendo doces pelas ruas da cidade. A manifestação de dava com mais intensidade, quando os pais levavam Dê para passear no Pelourinho. Quando saíam de uma das mais antigas igrejas da Cidade Alta e passavam pelo Terreiro de Jesus, a menina, começava a chorar e a sentir-se estranha. “Quero doce, quero doce, mãe, me dá doce!”.


Nem mesmo os doces alemães (bolos, biscoitos, apfelstrudel e tortas) que a mãe fazia em casa satisfaziam a menina que se deliciava mais com os doces da terra. Arroz doce, quindin, cocada, canjica, pé de moleque, pudim de tapioca com baba de moça, doce de caju cristalizado etc. Ela comia com gosto. O casal era luterano e tinha ainda um certo pudor ou receio, em levar Dê a um Candomblé, conforme recomendava já algumas amigas do casal. Principalmente Djanira, uma artesã e pintora popular, que morava perto da Igreja de Nossa Senhora Conceição da Praia e que todos os anos participava da lavagem da Igreja de Nossa Senhora do Bom Fim.


Ela e algumas senhoras da “sociedade” freqüentavam o casal que já falava um pouco português, aprendendo com elas o linguajar do cotidiano, carregado de gírias e misticismo.”Mas me diga minha comadre como é que a senhora foi dar justamente o nome de Delícia para sua filha, me explique isto, Ó xente!” E acrescentou que delícia aqui a gente fala quando come ou acha alguma coisa muito gostosa e que dá grande prazer. Daí a gente fala “Hum que delícia!” Um pouco difícil foi explicar a expressão relativa ao amor, ao sexo, conforme canta aquele cantor popular que está fazendo muito sucesso atualmente “Delícia, delícia, assim você me mata, ai se eu te pego!”.

Mas quando aquelas senhoras nem tanto pudicas de outrora e as negras maliciosas conseguiram, finalmente, explicar para aquela alemã, já com alguns anos no Brasil, foi só gargalhada e frivolités meio lascivos, como se estivessem num cabaré. Só de senhoras e senhores.

Foi numa noite de calor, diante de uma farta mesa de doces e salgados alemães e baianos, com um pouco de vinho do Porto e cerveja (o casal sentia saudades da terra de origem, é inegável). Noite de lua cheia e seresta inesquecível –como aquela de Catulo da Paixão Cearense – “Noite alta, céu risonho, aqui tudo é como um sonho...” Todos se esforçaram para integrá-lo na nova terra que recebe amorosamente, de braços abertos, quem aqui chega, de onde vier, como o Cristo Redentor, no alto do Corcovado, no Rio de Janeiro.

A menina Delícia já estava com quase nove anos, e embora estudando no tradicional Liceu Bahiano, da elite de Salvador, já estava se misturando até como os “Capitães de Areia,” (meninos de rua ou das praias, que viam nela uma espécie de Vênus platinada mitológica), quando, num ato determinado, próprio da cultura germânica, o casal Marlene Dietrich e Gustav ( está explicado, a mãe dela dera o nome daquela artista de cinema famosa – O Anjo Azul - e a tinha influenciado dar o nome de Delícia para a neta, com certeza, coisas de família,daqui e de lá!) decidiram levar a menina a um terreiro para desvendar o mistério dos seus desmaios.

Toda de branco, a menina e seus pais, acompanhados de um grupo de 10 pessoas, incluindo aí Jorge Amado e Zélia, Djanira, Caribé e também três integrantes da colônia alemã da capital e que não tinham mais preconceitos sobre os ritos afro brasileiros, foi levada ao Terreiro de Mãe Menininha de Gantuá, no bairro da Federação, depois do Dique de Itororó.


Foi só vê-la e Mãe Meninha já disse tudo, do passado, do presente e do futuro de Delícia, conforme sua enorme sabedoria e bem querer. Chorou copiosamente abraçando-a, afagando seus cabelos loiros e admirando seus enormes olhos azuis. A menina não se assustou num um pouco, como se estivesse há muito tempo a procura desta estranha ( para ela ) afetividade religiosa. “Oi, mãe”, disse Delícia, deixando todos muito comovidos, chorando e cantando, todos naquela enorme roda de Orixás e seus filhos e filhas, cheirando a alfazema, filigrana de fraternidade infinita. “Fia, não tenha medo, a gente já estava esperando por você, há muito tempo,” disse Mãe Menininha.

Noite memorável para o sincretismo religioso da Bahia. Noite de rezas, cantos e cantigas. Seguindo o Candomblé, a partir daquela época, Dê se tornou, aos poucos, o braço direito daquela Mãe de Santo, que, muitos anos depois, pouco antes de morrer, delegou a ela seus poderes mágicos e a nomeou Mãe Dê Delícinha de Gantuá, de cabelos de ouro e olhos de safira, a primeira mãe de santo alemã em terras brasileiras.Guardiã de todas as doçuras pelo mundo afora, muito venerada e procurada até hoje, com quase 80 anos.

UM CONTO DE AMOR NA “INGLESA”


Diziam que os túneis eram mal assombrados. Fantasmas de antigos ferroviários mortos em acidentes durante a construção da Ferrovia Santos – Jundiaí, também conhecida como “A Inglesa”, costumavam aparecer em determinados dias, assustando as pessoas que moravam na Estação de Paranapiacaba, no alto da serra, em Cubatão, a caminho do mar.
Mas era neles que Mary e Jefferson, crianças ainda, costumavam se encontrar, depois das brincadeiras: jogo de bola, empinar pipas ou ainda balançando nas árvores da Mata Atlântica exuberante. Nas cachoeiras do trecho tomavam um banho refrescante e quase ao anoitecer pegavam “carona”, para voltar para casa, em algum trem subindo para São Paulo, com passageiros (muitos imigrantes japoneses, italianos,espanhóis, sírios libaneses, etc). Na descida, gostavam de encurtar o passeio (sempre uma aventura cotidiana depois da escola),subindo nos trens de carga, carregados com sacas de café para embarque no porto.

Mary era filha de um maquinista inglês casado com uma caiçara de Bertioga e Jefferson, filho de um inglês, chefe da Estação e uma jovem de Santa Bárbara D’Oeste, cujos avós eram norte – americanos (ianques),descontentes com a derrota dos sulistas,na Guerra de Secessão e que tinham entrado no Brasil pelo litoral. O forte encantamento das praias não impediu que eles subissem para São Paulo, a capital em grande expansão. Parentes de Mary e Jefferson até hoje moram no bairro de Santo Amaro.
A rígida educação de Jefferson não impediu que, já no começo da adolescência, namorasse Mary, cuja mãe por ser nativa, não era vista com “bons olhos”. Era o preconceito disfarçado, na época (entre 1910 e 1925) entre os moradores daquela vila. O pai dela sempre repudiava qualquer manifestação desse tipo, eterno namorado que era da esposa brasileira, que sempre tratava com grande respeito. Viviam apaixonados um romance que começou ainda aos 18 anos quando ele veio trabalhar na ferrovia, vivendo a primeira grande aventura de sua vida, ao atravessar o Atlântico, num navio cargueiro.

A amizade vivida entre Mary e Jefferson se tornou paixão, aos 13 anos, mais ou menos, quando a troca de olhares e o aperto de mãos se tornaram mais intensos. Ficavam juntos o tempo todo, separando-se aos poucos dos outros adolescentes que costumavam se reunir na pracinha da vila, sempre ao entardecer, para admirar o por do sol. E trocar juras de amor e furtivos beijos.
Quando terminaram o ginásio em Paranapiacaba tiveram que vir para São Paulo,onde haviam o Colégio Mackenzie e o Anglo Americano para filhos de ingleses, pois ambos pretendiam continuar os estudos.Ambos moravam em pensionatos diferentes, mas se encontravam sempre aos fins de semana, para namorar, indo ao Cine Metro, na avenida São João. Pelo menos uma vez por mês pegavam o trem na Estação da Luz e iam ver os pais, pois a saudade batia forte.


Quase na fase adulta, já perto dos 23 anos e faltando pouco para a formatura. Ela, enfermeira padrão e ele jovem engenheiro mecânico, decidiram ficar juntos para sempre, pois era grande o amor entre eles. Foi depois de uma matiné no Cine Metro, num sábado, de Agosto, que eles decidiram que já era a hora de se conhecerem mais.Tinham acabado de assistir, o filme “A Deusa do Canal” com Jean Harlow e Ramón Navarro. Num discreto hotelzinho do Campos Elísios, de propriedade de uma vivida senhora francesa, conhecido por receber estudantes apaixonados, selaram a união para sempre. Mary e Jefferson se entregaram um ao outro, ambos virgens na questão de sexo. Foi uma noite de sonhos para ambos, que só despertaram daquela magia por volta do meio dia de um domingo cálido de inverno. E com muita fome.


Pareciam de novo, aquelas crianças que brincavam dentro dos túneis supostamente mal assombrados naquela ferrovia “Inglesa”, no alto da serra de Cubatão.
“Não importa o que acontecer, meu amor, vou te amar para sempre”, frisou Jefferson. Mary confirmou também sua intenção selando o compromisso com um longo e doce beijo, ambos abraçados no quarto. O hilário foi que durante “a batalha do amor”, lá pelas tantas da madrugada, ambos caíram da cama e foram parar no chão, entre risadas.

De manhã, sonolentos ainda, na mais perfeita paz que dois seres humanos enamorados podem curtir, da janela aberta viram o pico do Jaraguá ao longe e ouviram o longo apito de mais um trem em direção ao interior paulista, saindo da Estação da Luz, com certeza o destino certo ou incerto de muitos outros casais apaixonados começando uma vida nova.