quarta-feira, 26 de junho de 2013

AVENTURAS DE BATE VOLTA,UM CÃO FILÓSOFO


Naquela manhã, meio chuvosa,ao acordar, num canto da praia de São Francisco, em São Sebastião, Bate Volta se deparou com a costumeira vasilha de comida que o Frei Lázaro tinha lhe deixado, bem perto de sua boca. “Ah, como é bondoso esse frei, nunca deixa os cães que batem à sua porta, ficar com fome!”Pela portinhola que dá acesso ao convento, viu que os freis já estavam rezando, compenetrados.Eles rezam por um mundo melhor, pensou, pois estava meio chateado com a vida canina, pois na tarde anterior teve que apartar uma briga feia do casal Rambo e Rumba, sem raça definida como ele, amarelo, por ciúmes de uma outra cadela que apareceu, ninguém sabe de onde, toda lampeira, no cais das balsas de Ilhabela. “Eu não devia ter me metido em briga de casal. Agora eles não vão mais falar comigo por uns tempos, mas deixa prá lá”.



Estava com a barriga roncando de fome pois quase raspou a comida na pequena tijela. Bebeu um pouco de água, esticou o corpo como alongamento para se animar e livrar a mente das trevas da noite, pois tinha tido um sonho estranho durante a madrugada, como se alguém o tivesse chutado violentamente, mas não se lembrava muito da cena. E assim saiu para o dia meio cinzento e ficar indo e vindo nas balsas entre São Sebastião e Ilhabela. Início de inverno, junho de 1959, mas não estava muito frio ainda.”Vamos ver o que vai acontecer na minha vida hoje?”pensou, latindo meio alto para que todos os outros cachorros de rua percebessem ali a sua presença, demarcando território.

Ao chegar ao cais percebeu que um velho cargueiro panamenho tinha ancorado de madrugada, com a proa voltada para norte, descarregando carne dos frigoríficos do Rio Grande. O cheiro da carne aguçou o seu faro e, num descuido do marinheiro, penetrou no navio por uma escada baixa.Tinha a intenção de sair logo sem ser notado,assim que abocanhasse algum osso ou pedaço de carne. Mas não percebeu que já estava desatracando e deixando o canal para seguir viagem. Só escutou alguns apitos do vapor. No convés da proa só viu ao longe a cidade e a Serra do Mar, meio encoberta por nuvens brancas. “E agora meu Deus, vão me jogar do mar, que é que eu faço!” Pensou nos amigos, mas agora já era tarde, o melhor que tinha que fazer era se esconder em algum lugar do porão, para evitar o pior, pois, de repente, tinha virado um cão clandestino. Só deu tempo de ver uma revoada de albatrozes e quero – queros grasnando furiosamente, como se tivessem dando gargalhadas de sua imprudência.



Depois de percorrer longos corredores, só ouvindo o roncar das máquinas, escolheu um cantinho quentinho atrás de uma das caldeiras. Adormeceu rápido como se quisesse esquecer a besteira que fizera ao entrar escondido no navio. Só depois de quase um mês é que o marinheiro Deusdará, um pernambucano calejado em viagens marítimas percebeu a presença de Bate Volta, meio arredio, assustado com medo de ser jogado no mar. Começou a fazer mesuras, latindo baixo e se rastejando, demonstrando humildade até se aproximar das pernas do marinheiro, que, ao contrário do que pensava, começou a alisar seu pelo, carinhosamente. “Vem cá meu bichinho, vem aplacar também a minha solidão no mar!”. E assim o cão percebeu que tinha conquistado um amigo e esse não lhe faria mal nenhum. “Você está um pouco magro, vem cá, vou lhe dar comida!”. Até então o cachorro só tinha comido, às escondidas, sobras da cozinha do navio e bebido água de chuva empoçada no convés. Rapidamente voltava a se esconder.Agora estava seguro e virou uma espécie de mascote podendo ir e vir a hora que quisesse pelo longo convés e outras partes do navio. Só evitava as bocas das fornalhas ardendo em fortes labaredas, em roncos assustadores. “Parece o inferno!”, pensava Bate Volta, saindo de fininho com o rabo entre as pernas.



Ganhou a amizade da marujada e quando o barco cruzou a Linha do Equador, como é de costume no mar, Bate Volta foi até homenageado, ganhando várias carícias na cabeça e farta comida, principalmente muito peixe frito ou cozido de Tanisho,o cozinheiro chefe, chinês de Hong Kong, há muitos anos no mar, assim como os comandantes, verdadeiros lobos dos Sete Mares. “Foi Netuno que mandou você para nos alegrar, Bate Volta”, disse, afirmando perante todos que ali estava um cão muito especial, amigo, companheiro fiel. Um dos marinheiros, depois de um certo tempo, descobriu seu nome. “É o cachorro do cais de São Sebastião, só pode ser ele! Muitas vezes eu vi ele por ali. Todos gostavam dele, até as meninas do Cabaré da Zilda, em Ilhabela, que tinham por ele verdadeira afeição. Latia, avançava e mordia a perna de algum marinheiro que, bêbado,quisesse bater numa delas”.



E assim Bate Volta deu a volta ao mundo. Em Cuba assistiu o desfile da Revolução feita pelos comunistas Fidel Castro e Che Quevara. Não entendia nada daquela movimentação toda, mas percebeu a alegria dos marinheiros embriagados da liberdade que proporcionava aquela mistura de Rum de Havana com Coca Cola americana, limão e gelo. Ficou um pouco bêbado também quando um marinheiro colocou um pouco numa tigela, para ver se ele gostava. Descuidou a pon to de cair no mar. “Cachorro ao mar, cachorro ao mar!”,gritou Zé Carioca, pulando na água e resgatando Bate Volta. Deitados no cais, secando ao sol, parecia que homem e cão riam à toa, etílicos que estavam, uma farra sem outras conseqüências, enquanto num bar do cais rolava um rififi daqueles, envolvendo mulheres da vida e militantes pró e contra a ditadura socialista que estava começando naquela ilha do Caribe. “Bate Volta, deu um longo suspiro depois de muito tempo. “Como estarão Rambo e Rumba?” Bateu a Saudade.



Em Nova Iorque, numa folga do navio, percorreu o Harlem e ouviu muita música Negra. Foi parar em Times Square. Pela enorme alegria e dança coletiva das pessoas que se abraçavam e se beijavam, Bate Volta, pensou “Só pode ser final de ano. “Happy New Year”, diziam as pessoas, ao som de Jazz. Passeou pela 7ª.Avenida e percorreu a Broadway, admirando enormes letreiros daqueles musicais famosos como “Hawai”, com a estrela Mary Martin e “West Side Story”, com Rita Moreno. Assistiu a um Tributo a Josephine Backer, a dançarina, cantora e atriz norte americana, a “Venus Negra”, que abalou a França nos anos 20 e 30. Sempre em companhia dos marinheiros, voltou para o navio. Ainda deu a volta e chegou a São Francisco, no Oceano Pacífico, passando por baixo da ponte Golden Gate. “Grande, muito grande”.No cais onde o vapor ficou atracado por alguns dias, ficou amigo de Elvis Presley e Natalie Wood, estrelas de Hollywod, num set de filmagem de “Férias do Amor”. Todos queriam ficar com aquele cão amarelo sem eira nem beira.



Não deu tempo. O navio já estava apitando para voltar para o “Brazil”. O coração de Bate Volta se acelerou e ele quase teve um treco quando, percebeu que era isso mesmo pela voz do seu amigo Deusdará – “Oh Yes, Oh Yes my friend Bate Volta!, estamos voltando para o Brasil”. Bate volta ficou tão alegre, mas tão alegre que acabou mixando no convés, correndo, prá lá e prá cá, lambendo a mão do marinheiro que também ria de satisfação, pois já estava longe da família no Rio de Janeiro, há meses.



O navio parou antes em Recife e Salvador,onde Bate Volta passou, com Tanisho,o cozinheiro de bordo, em frente ao Teatro Castro Alves, onde um teatro de revista homenageava Carmem Miranda. “Estou perto, estou chegando...”, latia o cão tão animado que uma baiana, vendendo acarajé e vatapá na porta do teatro, comentou – “Nossa, será que este cão está fazendo propaganda da peça, pois parece estar rodopiando e cantando ‘Tico-Tico no Fubá’” na calçada.



Uma semana depois,com sua carga de sonho e fantasia,o navio adentrou o canal de Ilhabela e ancorou no porto de São Sebastião. Com o coração na boca, latindo, latindo, de pé no convés, não podendo mais agüentar, Bate Volta voltava prá casa. Viu no cais, como num filme musical, Rambo e Rumba e a cachorrada toda de Ilhabela e São Sebastião dançando e latindo animadamente, esperando por ele. Muitas pessoas, homens, mulheres,os franciscanos e, naturalmente, muitas crianças, gritavam “Viva Bate Volta, Viva, vem prá rua, vem,vem prá rua!”. Como num passe de mágica, todos tinham sido convocados para assistir a chegada de Bate Volta. Estranha rede social esta feita com muito amor, ternura e sensibilidade, numa época em que a Internet ainda estava engatinhando. Faro, puro faro, sentidos que extrapolam qualquer noção de conhecimento, sem sombra de dúvida.



E naquela barbearia, próximo do centro histórico de São Sebastião, assim continua escrita esta mensagem única –



“Desta vida, deste mundo,nada se leva. Só se deixa. Então deixe o seu melhor sorriso, seu maior abraço, sua MELHOR HISTÓRIA, toda COMPREENSÃO e do AMOR a MAIOR PORÇÃO”.



Alguns anos depois, no final de sua vida, que chega para todos nós, seres viventes, Bate Volta partiu, chorado por muita gente. Ele que era amado, adorado, estimado por muita gente nesta terra, foi enterrado nas areias cálidas da Praia Deserta, com honras de herói dos Sete Mares. Na última hora, alguém,discretamente colocou em sua cabecinha amarela, como derradeira homenagem, um boné de Marinheiro. Vai com Deus, “Véio”. Conosco ficará apenas, como inesquecível lembrança, seu pequenino, mas grande coração.



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