quarta-feira, 24 de outubro de 2012

UM DOMINGO À LA AMARCORD OU A DENTADURA VOADORA DE DONA MARIA DA GLÓRIA


O dia em que a dentadura de dona Maria da Glória Leite da Costa, filha da baronesa de Mar D’Espanha (perto de Vassouras - RJ) voou pelo teto da sala de jantar, durante um almoço e briga feia do casal de anfitriões (um bafafá daqueles) pais de um grande amigo meu. Foi num domingo, no mês de março de 1959. Testemunha ocular, eu assisti tudo, com ar apalermado de pré adolescente. Nunca mais esqueci...

Querendo apaziguar os ânimos do casal em litígio, (aliás, viviam brigando por qualquer motivo) a filha da ex- Baronesa destituída de qualquer nobreza no começo da República, (final do século 19 e começo do XX) acabou levando a pior, (para vergonha de todos nós) tomando um safanão no rosto, deslocando a tal dentadura.

Lado a lado, todos nós, morrendo de vergonha, querendo contornar a situação, horrorizados, no entorno daquela farta mesa de macarronada, torta de frango, lagarto recheado, vinho Castelo, cerveja e guaraná Antarctica.

A dentadura foi cair exatamente dentro do copo com água onde ficava em cima de um criado mudo no quarto em que a ilustre hóspede, madrinha de minha irmã, dormia, naqueles dias, ainda sob os cuidados de sua fiel escudeira negra Nair, que eu também nunca mais vi. Nair deixou muitas saudades por sua extrema bondade, embora vivesse sempre muito irritada com tudo.

Ela sempre me tratava muito carinhosamente “o filho da dona Anita e seu Toninho”, apesar das bagunças que eu e seu filho Adilson fazíamos pelas ruas do bairro, próximo do Meyer, zona norte do Rio.

Maria da Glória sempre recordava para nós ter sido em sua juventude, professora primária do ex ministro Cirne Lima e do compositor popular Catulo da Paixão Cearense, aquele dos versos “noite alta, céu risonho, aqui tudo é quase um sonho”, etc, etc. etc... Ela nunca se casou, apesar de muito bonita, pele clara, olhos azuis e extrema finesse. Era durona com os alunos, afirmava para nós, adolescentes anarquistas, no mal sentido da palavra.

São lembranças de um pré adolescente e sua primeira embriaguês (pela vida) de jovem apaixonado, sonhando sempre ser um escritor no futuro. Por isso eu lia muito livros, jornais,revistas e fiz teatro no colégio, encenando peças como “ Eles Não Usam Black Tie”, do saudoso Gianfrancesco Guarnieri.Tempo de grandes descobertas.

Dona Maria da Glória nunca mais voltou àquela casa para visitar (pela primeira e única vez) familiares distantes. Ela era prima em segundo grau do avó materno deste meu amigo, por aí. Todos a chamavam de “Dona Neném”.

Mesmo por que morreu alguns anos depois, deixando como herança, a casa ( onde eu passava férias todos os anos), uma antiga cristaleira e um grande retrato oficial do presidente Getúlio Vargas que ficavam na sala. A casa confortável, cheia de lembranças, acabou sendo demolida para dar lugar a um Shopping.

E eu perdi para sempre minhas férias em Engenho de Dentro, onde seu irmão Gastão, solteirão e boêmio inveterado promovia memoráveis blocos carnavalescos no bairro. Um deles o bloco “Sovaco de Cobra”, onde os homens saíam fantasiados de mulher e vice – versa. Uma mistureba de libertinagem deliciosa, mas um escândalo naquela época, para as carolas e moralistas de plantão. Ainda.

Muitos anos depois, já bem adulto, vi o filme Amarcord, de Felini, num cinema de SP. Com sua genialidade de diretor, Fellini evocava passagens de sua infância e mocidade em uma pequena cidade do interior da Itália, antes e durante o Fascismo de Mussolini.

E lembrei-me daquela briga, na casa deste meu amigo que vivia terrível drama familiar, vendo os pais em constante desavença, sofrendo calado e só desabafando comigo, pois éramos carne e unha. A cena, cinematográfica, hoje hilária, ficou gravada em minha memória, apesar dos estilhaços cujas seqüelas a gente, por tabela, acaba levando para o resto da vida...

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