sábado, 11 de setembro de 2010

Ela conheceu Carmem Miranda assim... Um pouco de realidade e ficção - conto burlesco


“La Miranda está louca por um cigarro! Pelo amor de Deus será que não existe ninguém neste Cassino da Urca que tenha um maço de cigarros?! Chame o porteiro, a arrumadeira, uma corista,um músico, um dançarino, seja quem for, por favor arranje cigarros para Carmem, ela não se maquia se não fumar pelo menos uns três, anda, anda, ela já está no camarim e vai passar o resto da tarde se preparando para o grande show desta noite, casa lotada, gente importante, políticos, artistas, até o presidente Vargas vem, vai, vai!...”
A bicha parecia mesmo estar enlouquecida na faina de atender um simples pedido da estrela de volta ao Brasil depois de sua primeira temporada americana. Aliás o Cassino inteiro já começava a fervilhar naquele sábado,de fevereiro três horas da tarde, de sufocante calor carioca. Os cenários passavam de lá prá cá, de cá prá lá, um falatório nos corredores e salas, a orquestra ensaiando trechos de Tico Tico no Fubá...

Tudo tinha de estar pronto até às 21 horas, quando as cortinas de lamê dourado, com desenhos do Rio de Janeiro ( Corcovado, Pão de Açúcar, a calcada de Copacabana e muitas palmeiras) se abririam para a entrada triunfal da cantora e atriz que, do Clube de Paris, em Nova Iorque, já tinha estrelado três filmes de grande sucesso em Hollywood.E um deles, Serenata Tropical, já estava em cartaz no Cine Metro, na Cinelândia, atraindo milhares de pessoas. E nada de encontrar cigarros. “Credo, será que todo mundo parou de fumar, logo agora... Pelo amor de Deus, cigarros Petit Londrinos, tem que ser, para Carmem Miranda...PQP, vamos gente...”
Pô, mas quem fuma esta marca é só homem! gritou uma garçonete. Que é que você queria meu bem. A estrela só vive no meio de empresários de showbusiness. Pensa que é fácil! Tudo homem ou pelo menos... Chama a Nicinha, ela pode arrumar, se não tiver ela corre lá no boteco do português Abílio. Ela é assim com ele, se ele não tiver corre o Rio inteiro prá atender um pedido dela. Essa mineira recém chegada já caiu nas graças dele. Vai, chama ela...vai... Nicinha, Nicinha, cadê você... Tô aqui, meu bem, qui qui é?!Você tem cigarros aí? Ah! Ainda não, estou esperando o entregador trazer para vender de noite entre os convidados. É um pedido de La Carmem, por favor, corre lá então no Abílio. Petit Londrinos, tá qui o dinheiro... Mas se não tiver... Ah!, traga então Macedônia, Fulgor,Everest... Ela está tão louca prá fumar, não deve recusar... Vai, vai e vê se não fica de namorico com o Abílio, ele é triste, minha filha...Não pode ver um rabo de saia que...

E lá se foi Nicinha mais que depressa. Ela vendia cigarros nas noites e madrugadas de shows no Cassino. Além de carregar uma bandeja com as marcas mais conhecidas trajava um pequeno saiote de veludo vermelho que deixava as pernas e coxas de fora, mas sem exageros. Era assim o uniforme das vendedoras e das garçonetes no Cassino da Urca. Um luxo. Um pouco de sensualidade não faz mal a ninguém.
Nicinha, quando foi expulsa de casa pelo pai severo que era, acabou indo para o Rio, dividindo uma quitinete em Botafogo, com outra moça, do Espírito Santo, que trabalhava com um mestre de cerimônias, apresentando os números de um circo. Com ela conseguiu um emprego de bilheteira. E assim as duas fizeram amizade e foram vivendo a vida na Capital Federal. Ambas, naturalmente, cheias de sonhos e namoradeiras. Trabalharam também como figurantes em algumas comédias da Cinédia e na “linha do coro” nos teatros de revistas, na praça Tiradentes. Quando a situação apertava recorria ao jogo do Bicho, vendendo e tentando a sorte.
Deu sorte, no boteco do Abílio tinha um último maço de Petit Londrinos Ovais. Depois de flertar um pouco com ele,no lero,lero, um golinho de cerveja, conseguiu de graça os cigarros. Pôs no bolso o dinheiro. “Ah! Uns trocados para o bonde, não fará falta, fica comigo,” pensou. E lá ficou o português sonhando em ter um dia de folga prá passear em Paquetá, com ela. Pena que o pai não dava trégua, só trabalhar, trabalhar, juntar dinheiro prá poder, um dia, voltar a Portugal visitar a família lá distante.
De volta ao Cassino, pela porta dos fundos, não viu ninguém por perto. Deu de cara com Carmem Miranda depilando as pernas, vestindo um robe com motivos orientais. Ah! Entra, entra, disse, vendo o maço de cigarro, logo pegando um, acendendo e dando uma longa tragada. Nicinha, ficou como que paralisada, vendo assim tão de perto a estrela, notou as enormes unhas pintadas, o rosto emoldurando pelos cílios e sobrancelhas maiores ainda.Tão de perto assim, só Libertad Lamarque, a cantora argentina que fez rápida temporada no Cassino. Isso lá por volta de 1938, por aí...
Obrigada, minha filha, obrigada. Como é seu nome mesmo? Ni-Nicinha, disse. Ah! Então é você a famoooossssa Nicinha. Todo mundo aqui comenta que você, é bem prestativa. É, tento ajudar no que posso, né! Carmem ficou olhando, fumando, olhando. É, parece que me deixaram um pouco só, graças a Deus, é tanta gente que até fico irritada às vezes, mas fazer o que né, nega, são os ossos da profissão e do sucesso.
Ah!, mas comentam também que você, além de graciosa e simpática, tem belas pernas, já trabalhou em circo. Vou dar um jeito, vai lá, fala prô Moacir, o dançarino que eu M-A –N-D-E-I, colocar você lá na figuração. Traje de baiana estilizada é que não falta por aqui, né, disse Carmem, simulando uma pequena intimidade com Nicinha, que ficou um pouco nervosa e assustada. Vai, menina, vai. E avisa ele que, durante o show, vou dar unas olhadelas prá trás prá ver se você está incluída, OK. E brincou, vou levar você para os Estates comigo, quer?!

O resto o país inteiro sabe até hoje. A frieza com que La Miranda foi recebida pela alta sociedade aquela noite, uma trama provavelmente, de um grupo de jornalistas e artistas que achavam que ela tinha voltado americanizada e já não tinha nem mais molho e nem suíngue e que Hollywood a tinha transformado num estereótipo, numa caricatura da brejeirice brasileira e da latinidade. E olha que os produtores do show tinham se esmerado no repertório. De Lamartine Babo, Ari Barroso até Dorival Caymmi, Assis Valente e outros. É claro, no esquema do star system Carmem voltou riquíssima, prá compensar.
No final do show, decepcionada,Carmem Miranda pediu prá ficar um pouco sozinha, “fugindo daquele inferno, entrevistas,fotos,bajulações, etc”. Estava reclinada frente ao espelho circundado por luzes, por cima dos potes de maquiagem e perfumes. Num acesso gostaria de ter jogado tudo aquilo no lixo.Foi quando Nicinha pediu licença na porta entreaberta. “ Posso entrar”. Carmem levantou a um pouco a cabeça, estava chorando. “Tá vendo, querida, que ingratidão, o que fazem com a gente.” Soluçando se abriu com ela, dizendo que nunca mais iria voltar ao Brasil. Nicinha disse”não fique triste não, não compensa...”
Nos EUA Carmem Miranda tornou-se um ícone. Amiga de gente famosíssima. Entre eles Jimmy Durante. Em seu famoso show na TV americana, Carmem passou mal, quase caiu. Ele a segurou. “Que isso, menina, levante, o show não pode parar!”. Era o frágil coração magoado da estrela evidenciando o seu fim.
Carmem Miranda voltou, 14 anos depois, com sucesso internacional redobrado, mas cansada, cansada. Desta vez foi recebida calorosamente. Como tinha contratos intermináveis no show business americano, só voltou em 1955. Morta. E o país parou para ver sua maior estrela ser enterrada. Nicinha,que tinha tornado sua grande e discreta amiga, com ela viveu nos Estados Unidos,todos aqueles anos. Sempre aparecia muito sorridente,embora quase incógnita, lá no fundo, na “linha do coro”, com um pequeno cesto de frutas na cabeça, baiana estilizada,sambando, como as outras da Ucrânia,de Portugal,do México, da Grécia, de Cuba,dos confins dos EUA.Todas querendo vencer na terra do cinema.
O álbum de fotos e recordações de Nicinha,com várias dedicatórias de Carmem Miranda, guardado durante muito tempo, com muito carinho por Fernando, um de seus sobrinhos prediletos, extraviou-se certa vez e deve estar por aí, em algum lugar, na casa de alguém, sabe-se lá onde...
Talvez numa nebulosa cheia de estrelas, onde costumam ficar as almas sensíveis, como a de Nicinha, se deliciando com os trejeitos do Chica Chica Bom,do Bambu Le –Le ou do Tico Tico no Fubá de Carmem La Miranda.

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