quinta-feira, 18 de novembro de 2010

MARTHA, A SERRA, O MAR E O AMOR


A estação de Barra do Pirahy, no Estado do Rio, entroncamento da antiga Estrada de Ferro Central do Brasil ficou para sempre na memória daquela então adolescente mineira de 17 anos, Martha, a caminho de São Paulo e pela primeira vez longe de casa em busca da felicidade e um lugar ao sol. Era junho de 1944, um sábado, seis horas da manhã. Tinha saído de Belo Horizonte no trem noturno, na sexta –feira, por volta das 23 horas. Na parada do trem para fazer baldeação, notou que um jovem,vindo da capital federal, olhou sorrindo para ela e embarcou no mesmo vagão, quatro fileiras à frente.
Martha ficou um pouco desconcertada quando ele passou, tirando o chapéu num aceno cordial, início de um galanteio que, naquela época,sempre dava início a um namoro. Martha, que praticamente tinha “fugido de casa", por não ver muitas perspectivas em Minas para uma normalista recém formada, jamais poderia imaginar que começava ali a ser traçado o seu destino. Estava com um pouco de medo, mas agora sua vida era um caminho sem volta.
A pretexto de pegar um sanduíche no carro restaurante, Isaurino, era esse o nome do rapaz, puxou conversa com a sonolenta Martha. A conversa foi se animando aos poucos e cada um acabou falando da vida, projetos e sonhos. “Então, amigos para sempre?” perguntou o jovem. “Sim”, disse ela, embora um pouco tímida, percebendo o jeito meio arrastado de falar do jovem.
Isaurino desceu em Pindamonhangaba. Tinha de voltar ao campo de concentração “à la brasileira”, montado pelo Estado Novo do governo getulista para abrigar a tripulação e os passageiros de origem alemã do “Windhurk”, navio procedente de Hamburgo e que acabou preso em Santos pelas autoridades, em 1942, assim que o Brasil declarou guerra ao regime nazi-fascista e ao Império japonês, ficando ao lado dos aliados finalmente.

O enorme barco deveria ter seguido viagem com destino final em Buenos. Mas o mundo estava em guerra contra o Eixo: Alemanha, Itália e Japão.
Isaurino, que trabalhava na cozinha do navio, tinha pedido permissão para ir ao Rio onde tinha uma senhora conhecida de sua mãe na Áustria, antes da guerra, que trabalhava na cozinha dos hotéis Glória e Copacabana Palace como chef e confeiteira. E já estava “fazendo a América” pelo seu conceito e esmero no preparo de pratos deliciosos. Já era famosa a ponto de ser requisitada também pelas famílias Guinle, Marinho e Mayring Veiga, entre outras, para preparar banquetes nababescos e inesquecíveis aos seus convidados brasileiros e do Exterior.
Frida,seu nome, tinha um porém, não suportava as maneiras grosseiras do pré – adolescente Jorginho Guinle, que já se preparava para ser o conhecido e badalado "Playboy”, que, durante uma visita da famosa “Gilda”, do cinema, aprontou horrores no Rio, em l959. Tentou corrigí –lo, mas...

Em uma semana o jovem Isaurino aprendeu muita coisa que iria servir para sua vida profissional. Com o final da guerra se aproximando qual seria o novo destino de milhões de pessoas que ficaram sem suas pátrias e tinham sentido no corpo e na alma o desalento cruel do conflito que também fez muitas vítimas fatais.
Ao seguir viagem, Martha ficou pensando um pouco no jovem. “Um pouco ousado” para o seu gosto. De sua parte, Isaurino, em Pinda, também pensava na jovem. Em Belo Horizonte, antes de embarcar, Martha tinha assistido ao filme de sucesso na época – “A Ponte Waterloo”, com Robert Taylor e Vivien Leigh e, romântica que era, chorou com o cruel destino da jovem bailarina clássica que morre ao atravessar a ponte, a procura do namorado, um militar, numa Londres sob intenso bombardeio dos aviões inimigos.



Martha tinha grande sensibilidade e se condoía com o sofrimento de todos. Era um dos traços de sua personalidade. Nas poucas aulas eventuais que tinha dado na perifeira de BH já tinha percebido o abandono em que viviam os moradores que, muitas vezes, não tinham nem o que comer em seus casebres.
Começava a se formar a sua consciência social que se aprimoraria ao longo da profissão de professora na capital paulista. Nem sempre em colégios da elite. Mas em escolas de bairros populares como Vila Carrão e na distante Itaquera, reduto de muitos migrantes nordestinos, os chamados “paus de arara”, porque vinham amontoados na carroceria de caminhões, viajando durante dias e dias, em busca também de um lugar ao sol em SP.
O destino outra vez. No Dia da Vitória, “V”, Martha foi com as outras irmãs ao Rio aguardar a chegada dos irmãos e assistir ao grande desfile dos Expedicionários que tinham ido lutar na Itália. A Avenida Rio Branco estava lotada, desde a praça Mauá até na Cinelândia. O Rio e o Brasil eram uma única festa. Embora muitos pracinhas não sobreviveram e muitas famílias ficaram enlutadas. Seus irmãos Valdir, Osmânio ( o único que voltou com neurose de guerra) José, Luís e Eurico estavam de volta. Era grande a euforia. E foi ali, na multidão que comemorava, que Martha viu de novo, quase um ano depois, o jovem Isaurino. Com a permissão das outras irmãs começou ali a namorar.
E foi num bar da Lapa, com os irmãos, entre muitas histórias dos campos de batalha e copos de cerveja, que a mão de Martha foi pedida pelo “ousado” jovem, na encruzilhada da vida, na circunstância do pós – guerra, em que todos estavam meio que perdidos pelo mundo afora... Os irmãos dela até que gostaram daquele rapazola loiro assim, logo de cara, que passaram a chamar de “alemão batata”, como cunhado o resto da vida. É que a mãe deles, dona Francisquinha já tinha morrido e o pai já estava de “rabo de saia”, com outras, mulherengo que era.. Assim era preciso que as moças da família precisavam logo se casar. Exemplo: a mais jovem, Eneida, acabou se casando com um “homem mais velho “ de família de Niterói e que tinha estudado num Colégio Salesiano, de rígida formação religiosa e moral. Foi morar numa cidadezinha paulista para sempre.

Acabada a festa todos voltaram para suas cidades de origem. Martha e Isaurino ficaram em Pinda, morando inicialmente numa pensão familiar. Aprenderam do amor, a sua magia, respeito e sinceridade. Nunca mentiram um para o outro. Martha dizia, muitos anos depois, que era um “eterno namoro”. Como professora pediu transferência para a cidade e acabou lecionando também em Campos do Jordão, viajando alguns dias da semana no bondinho que subia e descia a serra. O casamento, na verdade, foi formalizado, com as duas famílias, só dez anos depois. Os pais de Isaurino, que tinham sobrevivido à guerra, vieram para o Brasil também, assim como outros parentes.
Martha e Isaurino tiveram quatro filhos: Bil, Tito, Doca e Ilídia Entre aulas e preparo de pratos o casal acabou abrindo o mais famoso restaurante da “Suiça Brasileira” até hoje. Doces e salgados que fizeram a fama do ex- cozinheiro do “Windhurk”.


A torta de maçã alemã e os doces e bolos suiços, bem como o bolo e pavê de morango e a torta de framboesa negra e mertilo fizeram ainda mais a fama do restaurante e da pousada rodeada de ciprestes e pinheiros. Chega-se até lá por uma alameda cercada de hortênsias.

A framboesa negra e o mertilo passaram a ser cultivados em três pequenos sítios da família nas encostas de Santo Antonio do Pinhal, Sapucaí Mirim e São Bento do Sapucaí, com a ajuda dos filhos e netos. Isaurino e Martha chegaram a ceder a pousada para a atriz Cacilda Becker e o elenco e técnicos durante as filmagens de “Floradas na Serra”, nos an os 1950. Pouco antes de morrer a estrela da Vera Cruz e diva do teatro paulistano ainda encomendava a famosa e deliciosa torta . No Dia dos Namorados o restaurante e a pousada ficam cheios.Com a fama crescente, muita gente famosa e nem tanto passaram pelo local.
Alguns anos atrás, Isaurino discretamente chamou Martha pelo carinhoso apelido “ô minha Nêga, acho que está chegando minha hora...” Morreu calmamente, dias depois, sentado na cadeira de balanço, ouvindo, como tantas vezes, quando sentia saudades de sua terra natal, “Lili Marlene”, na voz de Marlene Dietrich , o “Anjo Azul”, num velho disco.

Martha, vivendo sempre na Serra, mudou-se para Monte Verde, ficando isolada durante dois anos após a morte do marido. Um dia, chamou a filha Ingrid e o filho Germânio e disse “quero ver o mar, o mar...” Quase como uma obsessão. Foi dolorosa a descida até Caraguatatuba.

Perdida em pensamentos desconexos, chamava por Isaurino, pelos pais e por fantasmas que sua mente foi fabricando. Os filhos só falavam, “calma, mamãe, calma...”,chorando muito. Afinal Martha foi amada por todos eles e por muita gente que a conheceu ao longo da vida, por sua extrema delicadeza e trato com as pessoas.
Numa praia deserta, na Ponta das Canas,em Ilhabela, rodeada pelos filhos, netos e bisnetos e um grupo de frequentadores assíduos do restaurante e da pousada, Martha, com o olhar perdido nas ondas do Atlântico, numa tarde fria de junho, foi ficando em silêncio, em silêncio, em silêncio...

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