sábado, 15 de maio de 2010

O feijão e o sonho



A cidade anoitece. Com todos os sonhos ou pesadelos de mais um dia vivido em sua própria rotina. As luzes se acendem amareladas. As pessoas voltam para casa depois dos afazeres, com aquela ânsia característica de chegar (ufa!) em segurança. Aos poucos o barulho e o som das ruas e avenidas vão diminuindo e a cidade se esvazia e adormece. É nessa hora, começo da madrugada, que o ser noctívago que sou, desperta e começa reviver.


Até altas horas irei refletir sobre tudo o que me levou a chegar até aqui, náufrago sobrevivente de muitas tormentas. A minha vida passada a limpo para poder, mais uma vez, me posicionar como ser humano e cidadão. Nessas horas mortas é que percebo o quanto de mim, corpo e alma, foi, levado de roldão. Roda Viva é pouco! Sobreviver e escrever, o feijão e o sonho! Poderia ser melhor? Poderia não ter queimado etapas inutilmente? Ou foi tudo de bom tamanho? Tudo foi como deveria ter sido, por desígnios que já estavam traçados !? Sem que eu pudesse escolher?


Estilhaços juntados na memória, sangue e ossos, vida e morte, a mente tentando deletar o pior e selecionar só os bons momentos e o melhor de mim, o que foi mais sofrido, o que foi mais vivido, o que foi mais prazeroso, na tentativa de sobreviver e profundamente amar e ser amado, juntando guerra e paz, ódio e ternura, no envólucro sonho de valsa das lembranças. Sigo rumo ao significado do ser. Sou. Noite a dentro.Vem, memória, vem!


No mais profundo recôndito de minha alma, do meu constante sonho de cronista, procuro encontrar uma forma de conviver ternamente com as pessoas e os acontecimentos. Desde muito jovem. Por isso as redações escolares, a poesia escrita e muitas vezes declamada em voz alta, a música pop ou erudita, as encenações ou adaptações de peças teatrais, as leituras. Ah! as leituras. Todos nós, artistas vivendo nos limites da aldeia. Era tudo ou nada. Descobertas.


Era preciso vencer na vida. O que sabia eu dos sonhos? Era preciso ter uma identidade contra a exclusão, contra todas as formas de preconceito. Hoje percebo que nesta caminhada encontrei muita gente que me ajudou a vencer a longa jornada contra a ignorância. Pessoas que reforçaram a minha crença em mim e na humanidade, apesar de tantos holocaustos, pogrons, extermínios e terrorismo. A elas serei sempre grato. Eram gente da melhor qualidade e sensibilidade. Ainda estão por aí. Nesses poucos momentos, nas ruas, trocamos olhares cúmplices de como conseguimos. Sim, como conseguimos! Outros foram embora da cidade. De vez em quando recebemos notícias auspiciosas. Venceram. Cada qual a se modo. Outros já partiram desta para melhor.



Difícil não lembrar de “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino, que fez nossas cabeças na juventude. E a literatura que nos era introduzida no Colégio era da melhor qualidade. Época de professores dedicados e cúmplices dos nossos sonhos. Me lembro que não conseguia, por mais esforço de fizesse, ler “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa. Uma noite, desprevinido, o “Nonada” me pegou de jeito. E até hoje ainda é uma viagem não interrompida ao Brasil mais que profundo e ao mais profundo de nossa solidão. Afinal “o sertão está mesmo é dentro de nossas cabeças” Depois vieram outras descobertas, livros, filmes, peças, poemas, etc. Que integrou minha (nossa) formação para o mundo.


Tudo que fazia o deleite de um jovem em formação. Tudo que afastava de mim o medo e a solidão. Tudo que, no grande debate da vida, me ajudou a compreendê-la cada vez mais. E que me conduziram ao sentimento de solidariedade e de profissionalismo. Hoje sei que amar o próximo não é e nunca foi, tarefa tão difícil assim.


Por isso, a madrugada, que me excita e me apascenta, que me obriga a pensar e a mergulhar nos meus próprios “sertões” é a minha melhor hora. Por que saio renascido das minhas sombras para a claridade meridiana. Saio íntegro, compreendendo mais e mais.


( De longe...ainda parece que estou escutando o apito de algum trem noturno varando a madrugada...Cortando a cidade ao meio...Dá para garantir esta poesia ainda hoje? Ou a violência e a indiferença estão a engolir tudo e a todos!? )



Um comentário:

  1. Pra quem conhece o autor é um resumo da ópera,um sumário de uma bela peça...!!!
    Certamente,mais que a violência, é a indiferença que banaliza... engolindo a tudo e a todos.
    Mas ainda vivemos e morremos pensando que tudo na vida vale a pena!!!
    Que ótimo!!!

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