Minha Saudosa Mãe dona Anita aos 17 anos recém chegada á Jacareí em 1933.
Ainda bem que logo mais, no moderníssimo anfiteatro,com capacidade para cinco mil espectadores, recém inaugurado,seria comemorado o 34 aniversário do jornal “O Liberal”, com uma apresentação especial da peça “Mãe Coragem”, de Bertold Brecht, com o elenco da corajosa trupe de atores que tinha resistido bravamente à repressão.Oportunidade única, graças a uma bem fundamentada parceria entre o governo que começava e empresários esclarecidos e mecenas em potencial . A vida intelectual na cidade estava renascendo outra vez. Novos Tempos para todos.
Pintava no céu da tarde os conhecidos tons avermelhados de mais um dia outonal. A cidade, num recanto bucólico do Vale, fora também testemunha da selvageria imposta por aquele governo, um poder arcaico ilegítimo vindo ninguém sabe de onde, que quase acabara com a conhecida marca de um povo vivaz que habitava o lugar. Tudo seria esquecido aos poucos na dobras do tempo, com certeza, assim que abrisse a cortina. O sofrimento dos cidadãos parecia algo interminável naquela época de sombras. Dores surdas, secas, lágrimas furtivas, o ódio corroendo a alma. Ódio duramente aprendido por aqueles corações pacíficos. Agora a esperança estava no mar. Como um grito de alegria.
César, o historiador, se embriagava de satisfação, pelos bares da cidade. O poeta Carlos, declamava versos pelas praças. O fascismo, que se instalou no governo anterior, caiu pelas tabelas. A jornalista Raquel, refletia, “nada é mesmo para sempre”. E não era sonho. Era real. O pesadelo, que levou a trupe teatral para fora da cidade, tinha acabado. Os artistas voltavam prá casa mais do que reconhecidos. E realizados.
Passeio à Belo Horizonte e ao Rio de Janeiro em 1960 (Eu a Edna e o Eduardo) no clássico cavalinho de Pau.
O pesadelo ficou bem claro quando asseclas mascarados do governo empastelaram o jornal e incendiaram a redação. Os jornalistas passaram a viver na clandestinidade e no silêncio imposto. Alfredo, o escritor, descreveu os fatos como “uma longa noite medieval, de ignorância e cabotinismo que caiu sobre a cidade...” Sentia, agora, aquela enorme e lúcida vontade de escrever. Sentado, na penumbra do teatro, aguardando o início da peça, via aquele jovens, senhores e senhoras, velhos amigos, gente nova misturada, sem receios, animada.
Entre eles estava a figureira Matilde,cujas raízes africanas ancestrais lhe davam uma reconhecida sabedoria tribal ao ensinar crianças e adolescentes a moldar ingênuas pecinhas com o barro da região, tirado das margens do rio e mostrar a eles que,com naquele rústico artesanato, estava também uma verdade histórica e cultural. Aquelas crianças também podiam sonhar com um destino feliz. Com uma identidade telúrica. O próprio gosto dos moradores pela arte foi aos poucos moldado. Ela agora contaminava sadiamente a todos. Matilde também sobreviveu aos zumbis do antigo governo de Ton Ton Macouts.
A arquiteta Joana estava lá com seu namorado, um jovem intelectual da capital. Ambos de descendência judia comemoravam abertamente, entre abraços, beijos e acenos. Ela foi uma das primeiras a perceber que algo estava errado no ar a quatro anos atrás. Um novo ramal ferroviário foi aberto a pretexto de carregar e descarregar mercadorias. Mas eram corpos humanos empalhados que eram enfiados nos vagões. As vítimas, os descontentes com os desmandos políticos. Sempre há um jeito de eliminá-los não é!
Mas a resistência aos poucos foi se organizando. Aquela horda no poder não podia fazer o que bem quisesse. Reuniões secretas na calada das noites. A revolta era tanta que muitos queriam resolver a parada na base da porrada. Calma, espera, argumentavam os mais sensatos. A panfletagem começou a correr a solta. Com ajuda do jornal se denunciava toda a sujeira. A população foi criando coragem e se esclarecendo . E foi nos bairros que o levante aos poucos foi aumentando até chegar à praça principal da cidade, numa grande demonstração de forças e incon- formismo. Num movimento inédito, nas urnas eletrônicas, o NÃO foi avalassador. O velho governo autoritário caiu. E pela primeira vez temeram e começaram a enfiar o rabo entre as pernas.
Um dia antes da posse do novo governo, de madrugada, uma servente limpava o gabinete e estranhou, num canto, empilhadas, sinistros moldes cinza em forma de estrelas junto com um monte de papelada rasgada. Achou meio estranho. Como não havia quase ninguém na solidão do prédio, só os faxineiros. Ela acabou enfiando tudo aquilo num saco de lixo. No lixo da história. E foi em frente.
As luzes se apagaram na platéia do teatro, todos foram ficando em silêncio absoluto. A cortina se abriu. “MÃE CORAGEM” entrou empurrando sua carroça.
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