sábado, 7 de agosto de 2010

Feliz Natal



Como um clip. Rapidamente passou a sua vida a limpo. Tinha acabado de passar por uma dura lição. A de confiar demais em si e nas pessoas, como se fosse imune a qualquer tipo de desgraça, doença ou contra tempo. Tinha uma larga consciência de que a vida no pais, a vida das pessoas não estava valendo muita coisa, diante da famigerada lei de Gérson. Agora não teria mais nada de valor material. Assim o sentimento de perda se anularia pois não teria sentimento de posse. Perder a ingenuidade, um pouco do idealismo de que algum dia poderia mudar o sistema.

Isto valeria também para sua vida afetiva. O aprendizado do amor sempre foi muito difícil para ele desde da adolescencia, mas caminhara, aos trancos e barrancos, superando traumas e preconceitos. Homem feito, cidadão, amargava a terrivel timidez com as mulheres. Se sentia melhor entre os homens. Solteirão, quase um dândi. Professor, dedicava se aos alunos, era missão sacerdócio, embora a profissão como tantas, estivesse cada vez mais desgatada.

Um Insight: ademais o que representavam uma tv, um video, um radio-gravador, um relógio, e 200 mil cruzeiros. Nem mesmo os investigadores do 6º Distrito Policial tinham movido um dedo, arredado um passo, mexido uma palha para localizar e prender os ladrões. "E assim mesmo, acontece todos os dias, não podemos fazer nada", disseram. Há um mês do natal, tudo aquilo que fora comprado com tanto sacrifício sumira nas mãos de alguns ladrões pés-de-chinelo que entraram na casa enquanto ele dava aulas na escola estadual do próprio bairro.

Tomou decisão de nada mais comprar, a não ser o essencial. Teve de remoer o nojo que sentiu ao ver sua privacidade invadida. E sofrer com a impotência de um sistema que não mais protege, por falta de condições, os cidadãos. Aqueles mesmos cidadãos, com toda certeza trocarão trocarão cartões de boas festas e Feliz Ano Novo, com renovada esperança que uma trégua seja decretada. A sofisticação eletrônica ficaria nas próprias lojas. Quem sabe numa liquidação poderia comprar alguma coisa.

Revoltado, teve ainda que contar e recontar para os parentes, amigos e vizinhos o acontecido. E os indefectíveis tapinhas nas costas. "Não sofra, até o papa, o presidente, os ministros são roubados (e também roubam?!) Melhor seria que todos, ao invés de reclamar fizessem um boicote e decidissem não comprassem mais nada das lojas, apenas o essencial. Nada de supérfluo. Só o arroz, feijão, o leite, o pão! E então! Em dois, uma semana no máximo o sistema pediria arrego e as regras do jogo mudariam! Utopia! É mas imagina se não fosse! Nada comprado, nada haveria para se roubar. Mas tudo depende das pessoas, que como sempre, são submissas a tudo e não se revoltam.

O que mais doía era perceber a transformação em sua cidade. De bucólica passava a violenta, como nas metrópoles. Seres estranhos cada vez mais chegavam em levas. De repente ficavam difícil encontrar os amigos de sempre, de curtir a vidinha interiorana, tomar o café com bolinhos de chuva no meio da tarde. A cidade, mesmo enfeitada pelo natal e aguardando a chegada de um novo prefeito estava suja, entupida de gente desgastada e mal amada.

Gente que não tem culpa de nada, que quer apenas um lugar ao sol e tenta tudo, até não tentar mais nada e passar para o outro lado, o lado das sombras, do escuro, do breu. Mais que um roubo era uma traição, uma covardia, algo difícil de assimilar, de pegar leve assim. Cansara. Apartir de agora, na casa, tudo seria de plástico, como os pratos e talheres da casa de veraneio na praia que também já fora roubada varias vezes. Fazer o que?!

Os sonhos estariam também bem guardados, na caixa forte do fundo do coração, ali, naquele lugar indevassável, num cantinho bem pequeno ainda não visitado pela mágoa deste insensato mundo estaria a sua pureza, sua grande vontade de, sem nenhuma demagogia, construir um mundo melhor, habitável, amigável e respirável. Pelo clip viu que sua vida estava limpa, quase sem pecados. Poderia continuar. Era um pequeno consolo para quem está morando numa terra de ninguém, mais mal amada do que ele. Já que, como simples cidadão nada podia fazer, deixava para as autoridades de plantão, a grave questão social.

Passada a decepção se sentia mais leve, mais coerente com seus pensamentos. Se pudesse, como alguns privilegiados, apagaria a luz do aeroporto e embarcaria para qualquer lugar de um mundo mais civilizado. Como não podia, tinha que se contentar em viver mesmo por aqui, se possível num bairro mais tranquilo. Sossegado, chegou até a desejar, em seu silêncio-reflexão, um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo para todos. Estava em paz. Difícil, mas estava.


Edvaldo Ribeiro de Oliveira - 1982

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