DONA TECLA, OS CORONÉIS E OS NAZISTAS
Nonagenária, mas ainda lúcida, Dona Anita contava esta história tirada do seu baú de recordações. Uma história que bem podia ser de Cordel.
Viúva há mais de trinta anos, vivia só, mantendo a pequena casa na mais perfeita ordem no Cassununga, bairro um pouco afastado, perto da curva da via férrea que cortava a cidade. Independente, agia ríspida e perdia a paciência, com que ainda ousasse querer fazer as coisas por ela. Na parede, é claro, velhos retratos da família, costume de longa data. Um deles, o seu próprio, no auge da beleza, “em Paris...”, ironizava quando lhe perguntavam demais. Era a sua ligação com o passado. Nunca fora rica, mas orgulhava-se de ter vivido bem a vida. Conheceu, sim, Buenos Aires, nos tempos de Gardel, levada por sua rica madrinha carioca. Era uma adolescente, ensaiou alguns passos de tango com Manuel, o coração desabrochando ainda. Foi só.
Pernambuco! Nunca esquecia a terra de seu marido, o grande amor de sua vida. Jovem ainda embarcara, sozinha, num navio do Loyde Brasileiro, no Rio de Janeiro. Militar, perdera contato com ele, logo depois de casada. Ele adoecera dos pulmões após ingerir água de uma cacimba perto da base aérea de Recife. O ano: l940. Na altura de Abrolhos o navio foi torpedeado por um submarino alemão (?). Apesar do desespero de todos, mesmo com o casco e as máquinas avariados, o navio conseguiu atracar em Ilhéus, na Bahia. Todos foram transferidos para outro barco. Desta vez, da Cia. Mala Real Inglesa e assim chegaram ao Recife sãos e salvos.
No porto ninguém da família do marido a esperava. Vendo o nervosismo daquela moça muito clara, com uma única mala na mão, aproximou-se uma mulher que se apresentou como Dona Tecla. “O que está se passando, minha filha.” perguntou. Anita, perdida, explicou que não conhecia a cidade e que a carta enviada comunicando a sua viagem talvez não tivesse chegado e que o marido estava internado no Hospital da Aeronáutica. “Eu te levo até lá, pode deixar, vem”, disse Dona Tecla. Depois de vê–lo, chorar muito, abraçada a ele e certificar-se de que já estava um pouco melhor, Anita mostrou o endereço e a mulher a levou até a casa, por coincidência, perto da sua, em Paulista (PE). Foi aí que ela conheceu a mãe, os irmãos, as irmãs e outros parentes do marido. Nasceu também ali uma nova amizade, a de Dona Tecla.
Terra de costumes estranhos, porém, foi se acostumando. Uma semana depois procurou D. Tecla numa casa próxima, de onde vinha um som muito alto de uma vitrola. E umas moças na janela. “Tão procurando pela senhora, dona Tecla!”, disse uma delas. E lá veio a mulher. “Não, Anita, aqui não, vamos até a pracinha que eu explico tudo.”. Sentaram num banco e foi uma longa história... “Não importo não Dona Tecla. Cada um tem a vida que tem...” De braço dado com ela, Anita, por fim, conheceu os mais belos lugares de Recife, Olinda, Boa Viagem... As irmãs do marido ficaram horrorizadas quando souberam. Até ameaçaram expulsá-la e contar tudo ao irmão doente no Hospital. Uma fofoca atrás da outra.
Na janela da casa da mãe do marido, Anita ficava, várias horas da noite, aquele calor insuportável, vendo a função da casa de Dona Tecla, recebendo os coronéis com toda amabilidade e esperteza do ramo. Uma fila de carros. Bordel e cassino ao mesmo tempo. Por dentro um luxo bem próximo da luxúria. Era respeitada por todos, apesar dos olhares de algumas mulheres na rua, vendo nela uma poderosa rival. Moderna, quando colocava seu tayer branco, o seu óculos escuros e um turbante à la Ingrid Bergmann, no filme Casablanca, arrebatava ainda mais os corações. Até dos jovens filhos daqueles usineiros riquíssimos. Mas bateu forte a sombrinha nas costas de um deles que queria saber quem era aquela novidade branca. “Ora, ponha-se no seu lugar, fedelho, esta aqui não é pro seu bico não, é casada e é minha melhor amiga, respeito, viu!”. E despachou o jovem, que saiu com o rabo entre as pernas. “Moleque, deixa estar que eu converso com o pai dele de noite”!
Romantismo no ar, viu Casablanca várias vezes com Anita no melhor cinema da capital, chorando muito com a história e a música. Amava de paixão Humpfrey Bogart, o galã do filme.
Devorava pipoca também. “Será que um dia ele vem ao Recife?”, sonhava. Foi tomando um refresco de graviola, numa tarde de sábado, que Tecla revelou a ela o seu segredo maior. “Sabe, Anita, não vou ficar muito tempo nesta vida não. O que ganhei dos coronéis já dá prá me manter e a educação da minha filha com um deles, aquele que eu mais amei e me amou, já está garantida.
Ela só não pode saber dessa minha vida! Está lá com as freiras carmelitas, em Igarassú (PE). A mocidade passa logo e esta guerra na Europa vai mudar tudo, você vai ver!”
Um dia, as duas estavam caminhando nas proximidades de Itamaracá, na praia. Tecla viu emergir um submarino. Deu até prá ver a suástica alemã. Ficou muito surpresa, mas disse rindo, às gargalhadas, “Não te falei, minha filha, daqui a pouco estarão todos lá no meu cabaré, enchendo a cara de cerveja e cantando, bêbados.” Dito e feito, sabe-se lá como, vários oficiais,de olhos azuis, na noite mais histórica da casa de D. Tecla, lamberam os beiços com as muquecas, os guisados e caldeiradas de carneiro, carne seca com farinha de mandioca, as tapiocas, sarapatéis, chambaril, mungunzá e outros pratos da culinária nordestina, regados com cachacinha de Garanhuns, com cajus doces, maracujás, umbus cajás, siriguelas e muitos doces jamais vistos por aqueles nórdicos e muitas cerveja é claro. Dançaram Jazz e frevo e dormiram “com as mais bonitas morenas”, de Pernambuco.
Para os coronéis foi um congraçamento. Dona Tecla até permitiu que a bandeira de Hitler ficasse pendurada até de madrugada na fachada.
Não gostou muito mas... estavam pagando muito bem pela noitada tropical .Um grande escândalo, um carnaval, uma farra quase orgia meio que abafado pelas autoridades. “Vistas grossas” foi dado ao ocorrido. “Ora! Uma vez na vida não faz mal!” Corria o ano de 1941. Um ditador estava no poder: Getúlio Vargas. Que, no ano seguinte, imaginem, declarou guerra “às potências do Eixo: Alemanha, Itália e Japão,”, em seu famoso discurso radiofônico.
Terminada a guerra, em 1945, Anita, com o marido curado voltou ao Rio. Nunca mais ouviu falar de dona Tecla. Mas sempre lembrou seu nome e sua amizade num dos momentos, ao mesmo tempo triste e feliz, de sua vida. Amizade sincera mesmo que à beira do enorme precipício da hipocrisia da época. Em 1946, um novo presidente, Eurico Gaspar Dutra, redemocratizou politicamente o Brasil, proibiu o jogo, fechou os Cassinos e muitos cabarés e cafetinas perderam sua tradicional clientela, na nova ordem moralizadora do país. Depois, Anita passou a viver o resto de sua vida naquela cidadezinha, onde educou os filhos, trabalhou como funcionária dos Correios e se tornou uma fervorosa evangélica.
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
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