quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O LIVRO DE RUTH
Enquanto a mãe conversava com dona Albertina que tinha ido à Estação receber dona Chiquinha, a pequena Ruth ia observando tudo. Andou pelo corredor da casa antiga, olhou as salas, os quartos, a cozinha e chegou até o pequeno quintal. Depois, no sentido inverso, olhou a rua, através da grade do portão. A “Rua do Meio”. Um pouco temerosa ainda abriu o trinco e sentou-se na guia da calçada. Rua de terra ainda. Que a rua começava na praça já sabia. Mas, curiosa, onde iria sair do outro lado? Só dias depois ficaria sabendo. Ia se familiarizando aos poucos com tudo e todos. Os meninos, as meninas, dona Bidita, seu Arlindo e outros.
Demorou um pouco para desatar a saudade prensada na alma. A amiguinha dizendo adeus, adeus, na plataforma da cidade mineira de onde provinha, as fagulhas da Maria Fumaça, noite adentro. Oh! Minas Gerais quem não te conhece... Como pode um peixe vivo viver fora... Quantas vezes cantara no coral infantil da Escola "Dr. Pacífico Vieira." Oh! Minas nunca mais, nunca... As lágrimas foram secando aos poucos no rosto. Um soluçar no peito, uma tristeza que só começara a sentir ali na calçada daquela terra estranha. São Paulo! São Paulo! Jacarehy... Como conversavam aquelas duas comadres, credo!

Dona Albertina e as outras vizinhas ficavam horas vendo a mãe falar da sua conversão, que foi um verdadeiro escândalo naquela pequena cidade mineira. Afinal, dona Chiquinha saía na frente da procissão do Santíssimo naquelas semanas santas que cobria tudo de roxo e preto.

Depois das novenas, rezas e cantorias, aquele silêncio "De Profundis", do Nosso Senhor morto. Mea Culpa, Mea culpa, Minha Máxima Culpa. Acompanhada de dona Ana, negra e “meio metida em política”, que tinha um único filho, Jamelão, que gostava de cantar e seria, anos mais tarde, compositor de sambas nas noites cariocas do Brasil, tornando-se muito popular e famoso.

Foram dois missionários evangélicos norte americanos que apareceram na cidade que tanto fizeram, tanto fizeram, leram tantos trechos intermináveis da Bíblia, comparando aqui e ali com o ferrenho catolicismo apostólico romano da mãe, que acabaram derrubando as muralhas de Jericó, convencendo dona Chiquinha a virar “irmã” daquele pequeno grupo de convertidos. Até nisso dona Ana seguiu os passos da amiga, fiel que era na amizade tornando-se também uma nova e fiel evangelizadora.
Dona Chiquinha continuava preocupada com o marido ferroviário que era amante do jogo e da farra com o mulherio. Uma vergonha! Por isso controlava a vida dos filhos tentando encobrir tudo. Hábito que já vinha lá das Minas Gerais. E que endureceu ainda mais porque as filhas já estavam ficando “mocinhas” e os filhos também. Tanto que os namoricos já começavam no portão, até o ríspido “já prá dentro” da mãe.
Ruth, que da antiga escola guardava boas lembranças, estava ansiosa em conhecer a nova. Instalada num sobrado antigo datado de l868, o Grupão. O uniforme não mudara, azul marinho. Bom para a mãe que estava economizando bastante para reformar um pouco a nova casa. Tempos difíceis de adaptação. O Mercado e as compras era o único passeio da mãe, depois da pequena Igreja Evangélica. Mas não faltava nada na mesa comprida onde todos ainda se reuniam para comer. Anos mais tarde dona Chiquinha virou Adventista, por obra de dona Aninha, tão severa quanto a mãe. Mas também muito educada e gentil com todos e, em especial, com as crianças.

Com o coração na boca seguiu para o seu primeiro dia de aula, calçando uma alpercatas bem simples. O cabelo, alourado, com duas tranças e uma fitinha azul acompanhando o uniforme. A mãe, cheia de conselhos e advertências, a levou até metade do caminho que Ruth já conhecera dias atrás. Juntou-se logo a um pequeno grupo de outros alunos, curiosos e animados. “Sou mineira, uai!” Cadernos embaixo do braço, na fila, a sineta blém, blém, blém impôs o silêncio.Cantaram o Hino Nacional Brasileiro, com toda pompa e circunstância cívica. A sua turma, da 4ª. Série primária, foi a primeira a entrar, subindo aquele escadão que rangia, até o primeiro andar. A sala de aula onde Ruth ficaria tinha quatro grandes janelas, de onde se podia avistar um rio muito bonito. Um pouco absorta, apesar do alarido dos colegas, ela olhou o céu tão azul daquela manhã. Celeste, sua amiga pelo resto da vida, sentava ao seu lado. Começava a se sentir mais segura.
Minutos depois entrou a temível professora dona Rosalphina. Ruth olhou a nova professora. Todos muito quietos. A chamada minuciosa de A a Z. “Ruth Ribeiro de Oliveira”. “Presente, professora”. Dona Rosalphina tirou os óculos e a encarou. “Ah! Então você é a nova aluna... que veio de Minas... Seja bem vinda, minha filha...” E sorriu para Ruth. Que retribuiu a cortesia. “Obrigado, professora”, respondeu. O gêlo fora quebrado. Na primeira redação, cujo tema foi “Saudade”, Ruth lavou sua pequena alma. A professora destacou a sensibilidade da nova aluna, lendo em voz alta para a classe toda. Ruth ficou meio encabulada.
Começava ali uma nova vida, uma nova história. O livro aberto de Ruth.

Um comentário:

  1. Edvaldo! Que resgate de memória!!!Estou sem palavras...Delícia de texto, meu amigo...a gente fica querendo mais!
    beijos e obrigada!

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